O sargento
gaúcho Sílvio Delmar Holenbach mereceu as glórias destinadas aos
heróis da gema. Virou nome de colégio, de rua, de auditório, de
zoológico, de praça. Por ter morrido para salvar um menino que ia
ser devorado por ariranhas, incrustou um dos mais pungentes capítulos
no livro de ouro da coragem.
Mas
perdura um esquecimento e a gratidão pode ser mais preciosa que o
bronze dos monumentos. Passados 33 anos, o garoto resgatado das
mandíbulas das ariranhas, Adilson Florêncio da Costa, jamais
procurou a viúva ou os quatro filhos do seu anjo da guarda. Nunca
bateu à porta deles. Nunca telefonou. Nunca enviou sequer um cartão
de Feliz Natal.
Ele nunca perguntou por nós. Mas não cobramos nenhuma atitude dele,
seguimos nossas vidas diz o filho mais velho do sargento, o médico
otorrino Sílvio Delmar Holenbach Júnior, 39 anos.
Herdeiro
do nome e da memória do pai, Sílvio Júnior viu o sargento se
arrojar dentro do viveiro de ariranhas chamadas de lontra-gigante
ou lobo-do-rio. Era agosto de 1977, o militar passeava com a mulher,
Eni Teresinha, e os quatro filhos para comemorar a sua aprovação no
vestibular de Agronomia da Universidade de Brasília (UnB).
Quando
a família já deixava o zoo, ecoaram gritos desesperados do recinto
das ariranhas. Era Adilson, 13 anos, que havia se desequilibrado e
caído entre os animais. Sílvio Júnior testemunhou a reação do
pai:
Ele disse: Tem gente lá dentro. E saiu correndo.
O
sargento pegou Adilson, machucado, e se posicionou na ilhazinha do
fosso. Conseguiu entregar a vítima nos braços de populares que
ficaram na amurada de proteção. Ao tentar saltar da ilha, para se
pendurar na grade, aconteceu a tragédia: as ariranhas o puxaram
pelas pernas, com seus possantes caninos, para dentro da água. Elas
estavam furiosas, imaginavam defender seus filhotes de uma intrusão
humana.
Vi tudo lembra Sílvio Júnior, na época com seis anos.
O
sargento agonizou três dias no Hospital das Forças Armadas (HFA).
Mais de cem lacerações o afligiam, morreu de infecção
generalizada, a água do fosso estava pestilenta. O irônico é que
Sílvio Holenbach fazia um trabalho sem riscos no Exército. Aos 33
anos, longe do front, era burocrata no Serviço de Arquivo Médico do
HFA.
Vítima
das ariranhas prefere o silêncio
Atônita
com o luto precoce, quatro filhos a criar, Eni Teresinha voltou a
Porto Alegre para refazer a vida despedaçada a mordidas. Hoje com 66
anos, ela não gosta de recordar o episódio, prefere que o
primogênito se encarregue da entrevista.
A
família nunca assimilou a perda, mas foi em frente, inspirada na
própria bravura do sargento. Todos os filhos se projetaram. Paulo
Henrique, 38 anos, é analista de sistemas no Banco Regional de
Brasília. Bárbara Cristine, 36 anos, é advogada em Porto Alegre.
Débora Cristina, 33 anos, dá aulas na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
Morando
em Brasília, Sílvio Júnior acredita que o pai sempre velou pelos
filhos desde o céu dos generosos. Coincidências embalam a crença
nessa intercessão. Uma das mais comoventes: um dos médicos que
atendeu o sargento mutilado, José Carlos Daher, convidou Sílvio
Júnior, três décadas depois, para ser diretor do Hospital Daher.
Detalhe: os dois não se conheciam antes da nomeação.
A
saudade é perpétua, mas o bálsamo do tempo permite análises.
Sílvio Júnior acha que o pai estava predestinado a um fim heroico.
Quando jovem, em Cerro Largo (onde nasceu, na região das Missões),
salvou um desconhecido que se afogava no Rio Jacuí. Ao perceber que
o homem era levado pela correnteza, não hesitou em se jogar às
águas.
Honrarias
eternizam o sacrifício do sargento. O Zoo de Brasília adotou o seu
nome, uma escola de Cerro Largo fez a mesma homenagem. O feito
repercutiu até nos Estados Unidos, o então presidente Jimmy Carter
enviou telegrama de pêsames à família.
Só
quem silenciou foi Adilson da Costa. Vizinho de Sílvio Júnior em
Brasília, trabalha no Postalis, o Instituto de Seguridade Social dos
Correios. ZH o procurou, mas ele mandou dizer via secretária que não
fala sobre o assunto. Sempre evitou falar.
Fonte: Por Nilson
Mariano, publicado no jornal Zero Hora, em 27/03/2010
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