Mercado
movimenta R$ 24 bilhões por ano e segurança das redes elétricas
não aumentou.
BRUNO
ABBUD, Revista
época
Com
uma canetada em 2000, o então presidente do Instituto Nacional de
Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), Armando Mariante
Carvalho Junior no governo de Fernando Henrique, obrigou 196 milhões
de pessoas a gastar ao menos R$ 1,4 bilhão para a troca potencial de
tomadas em mais de 60 milhões de residências em todo o Brasil.
Carvalho hoje integra o rol de investigados na Operação Lava Jato,
mas não por ter liderado a incômoda revolução da tomada dos três
pinos. Como ex-vice-presidente do BNDES, ele é investigado por
participação em empréstimos fraudulentos ao pecuarista José
Carlos Bumlai, o amigo do ex-presidente Lula que foi condenado a
quase dez anos de prisão por corrupção e gestão fraudulenta.
No
caso dos três pinos, Carvalho estabeleceu, por meio de portaria,
prazos para que fabricantes e comerciantes de material elétrico e
eletrodomésticos se adaptassem ao padrão NBR 14136 — um termo
alfanumérico que define tecnicamente a nova tomada. Em 1º de julho,
a tomada de três pinos completa seu sétimo ano de existência
obrigatória. Ninguém mais pode fabricar ou importar aparelhos com
plugues ou tomadas fora do padrão, sob pena de elevadas multas.
Ninguém pode também vender no varejo tomadas velhas nem
eletrodomésticos com o plugue antigo.
Duas
perguntas, no entanto, ainda assombram os brasileiros: por que o
padrão de tomadas e plugues foi alterado? E quem, afinal, ganhou com
isso? Carvalho não quis responder às perguntas de ÉPOCA. O
executivo Marco Aurélio Sprovieri Rodrigues, o maior inimigo que a
tomada de três pinos já teve, verbalizou a hipótese mais frequente
no setor de varejistas do comércio elétrico. Apontou uma
multinacional francesa como beneficiária direta da adoção da
tomada de três pinos.
Sprovieri
é vice-presidente da Federação do Comércio do Estado de São
Paulo (Fecomercio-SP) e presidente do Sindicato do Comércio
Varejista de Material Elétrico e Aparelhos Eletrodomésticos no
Estado de São Paulo (Sincoelétrico). Numa tarde de abril, no centro
do Rio de Janeiro, no quarto andar do prédio da Confederação
Nacional do Comércio, buscava, sem sucesso, uma tomada adequada para
recarregar o celular, antes de discorrer sobre a hipótese que lhe
parece a mais razoável.
A
norma NBR 14136 foi estabelecida inicialmente em 1998 pela Associação
Brasileira de Normas Técnicas, a ABNT. Completará 20 anos em julho
e determina a padronização do encaixe em formato hexagonal, fixado
à parede, com três furos posicionados em ângulos que lembram a
pirâmide de Quéops. Na parte interna, possui três pequenos pinos
ocos conectados à fiação. Os plugues de aparelhos
eletroeletrônicos que ali se conectam caracterizam-se pela
existência do terceiro pino.
O
principal argumento favorável à tomada de três pinos, à época,
era a segurança — uma vez que o recuo no encaixe impossibilita,
por exemplo, que uma criança encoste o dedo no pino semiencaixado e
energizado. Diminuiu também a chance de o plugue se soltar
facilmente da tomada. Além disso, o terceiro pino evita choques
quando conectado a tomadas de imóveis com aterramento elétrico. No
entanto, os números oficiais de pessoas atendidas pelo Sistema Único
de Saúde (SUS) por choque cresceram continuamente nos últimos sete
anos.
Em
2011, quando a tomada de três pinos se tornou obrigatória, houve
857 atendimentos por exposição a corrente elétrica registrados no
SUS em todo o Brasil — boa parte em residências, habitações
coletivas e escolas. Em 2017, o Ministério da Saúde registrou 1.307
atendimentos por choque elétrico em todo o Brasil, crescimento de
mais de 50% em seis anos. O número de internações por choque
também aumentou, saltando de 22 em 2012 para 102 no ano passado. Até
janeiro deste ano, houve 64 internações por choque elétrico pelo
SUS no país. As mortes por choque elétrico em residências
mantiveram-se num gráfico linear. Desde os anos 2000, há uma média
de 1.300 por ano.
A
tomada de três pinos mostrou-se ineficiente porque dependia de que
as residências brasileiras fossem aterradas. O terceiro pino, como
se sabe, só funciona em imóveis com aterramento. Isso significa
que, se a tomada não estiver coligada a uma barra de cobre de 3
metros cravada na terra, a segurança propalada não existe. Uma
pesquisa constatou que metade das residências brasileiras não
dispõe de aterramento elétrico.
Criada
para ser padronizada no mundo todo, a primeira versão da tomada de
três pinos tem origem em 1986 na sede da Comissão Eletrotécnica
Internacional (International Eletrotechnical Comission, a IEC), em
Genebra, na Suíça. Batizada como IEC 60906-1, não decolou. Dos 85
países que compõem a IEC, só Suíça, África do Sul e Brasil
decidiram assumi-la como padrão.
A
ABNT importou a ideia da Europa em 1994. Embora a aparência tenha
permanecido a mesma, houve adaptações técnicas. Enquanto a tomada
europeia era própria para suportar uma intensidade elétrica de 16
amperes e tinha furos de 4,5 milímetros, a brasileira apareceu em
duas versões: uma para voltagens de aparelhos menores (como
liquidificadores), com furos de 4 milímetros e feitas para correntes
de 10 amperes, e outra para voltagens de aparelhos maiores (como
máquinas de lavar), com buracos de 4,8 milímetros e própria para
aguentar um fluxo de até 20 amperes.
Na
ocasião, houve na ABNT quem preferisse adotar o padrão alemão
Schuko, considerado o mais seguro do mundo. Essa opção, no entanto,
obrigaria o brasileiro a pagar R$ 40 por um plugue. A nova tomada de
três pinos — com um custo de R$ 8 — era quatro vezes mais cara
que a antiga, mas saía por um quinto da versão alemã. Em 2017, o
mercado de tomadas, plugues, cabos e extensões faturou R$ 23,7
bilhões no Brasil, segundo a Associação Brasileira da Indústria
Elétrica e Eletrônica (Abinee). É tanto dinheiro que daria para
cobrir o déficit mensal das contas públicas do governo federal.
Executivo
do setor elétrico há 50 anos, Marco Aurélio Sprovieri disse que,
no auge da discussão para tornar a norma obrigatória, a
multinacional francesa Pial Legrand trouxe para o Brasil os moldes
prontos para produzir o padrão que aqui tinha acabado de se
transformar em norma. A empresa é uma gigante que atua em 180 países
com um faturamento anual de € 4 bilhões, quase R$ 18 bilhões.
“Comentava-se
na época que a Pial já tinha as máquinas para fabricar o novo
padrão antes mesmo de ele ser imposto no Brasil”, disse Sprovieri.
Só a Pial tinha o formato hexagonal. “A empresa se beneficiou mais
do que os outros fabricantes, que tiveram um pouquinho mais de
dificuldade de desenvolver um novo processo fabril de produção”,
disse.
Sprovieri
afirmou que a empresa francesa havia apostado na mundialização do
produto, o que não se realizou. “O lobby foi uma das maiores
produtoras do mundo já ter a fábrica, os moldes, os pinos, as
máquinas para fazer os pinos, todo o processo fabril pronto quando a
IEC desenvolveu a norma”, disse. A França não adotou, a Alemanha
não adotou, a Itália não adotou, e a fábrica ficou inutilizada.
“Esse padrão foi previsto pela IEC para ser um padrão universal,
mas nenhum país quis mudar seu padrão para não causar impacto
desnecessário na sociedade. Houve um investimento em novas máquinas
e equipamentos pensando numa coisa que não aconteceu. Aí o único
lugar em que podia acontecer era no Brasil. E aconteceu.”
A
adoção da tomada mais segura do mundo, modelo Alemão, sairia
quatro vezes mais cara do que a peça de três pinos escolhida no
Brasil. De 85 países de associação mundial, só outros dois
seguiram a opção brasileira
O
executivo disse suspeitar que lobistas a serviço da indústria
francesa tenham influenciado o Inmetro a tornar a tomada de três
pinos obrigatória no Brasil. “Acredito que houve um acordo com o
Inmetro para estabelecer isso”, disse. “Tenho quase certeza de
que a empresa (Pial
Legrand) vendeu
a ideia para o Inmetro no Brasil, que pôde impor a norma aos
consumidores. E o Inmetro baixou uma portaria que obrigou 200 milhões
de pessoas a aderir a um padrão totalmente desconforme com o que
tínhamos. É uma presunção.”
O
lobby teria sido direcionado ao baixo escalão da autarquia. “Não
foi uma ação a mando de governo, foi uma ação meio que pessoal”,
disse. “Alguém da área técnica do Inmetro aceitou essa ideia
como uma ideia a ser levada adiante.”
Sprovieri
reuniu sindicatos e setores de classe e passou a enviar ofícios ao
Inmetro, alertando para a incongruência da obrigatoriedade da norma
no Brasil. “Não digo que o padrão é ruim”, declarou. “Mas
havia um estoque muito grande no país de um padrão que não era
inadequado. Era funcional. Além disso, poderia ser criada uma
transição para um novo padrão, dois furos, dois furos com pino
chato, mas tudo encaixado no mesmo lugar, e sem que isso fosse
obrigatório.” Outra solução mais simples para a questão da
segurança, segundo Sprovieri, seria encapar os pinos até a metade,
de maneira que o toque não resultasse em choque elétrico. Os
ofícios foram ignorados.
Quando
a IEC lançou a tomada de três pinos nos anos 1980, Inglaterra,
França e Alemanha estavam entre os países mais influentes na
comissão, segundo Amaury Santos, diretor da IEC na América Latina.
“Era um sonho padronizar plugues e tomadas internacionalmente,
porque, por muitos anos, usou-se o plugue como barreira técnica de
mercado”, disse. “Você comprava um aparelho nos Estados Unidos e
não podia usar no Brasil e vice-versa. Proteção de mercado.”
Sustentada
por anuidades pagas pelos países-membros e com a venda de normas de
adoção voluntária por governos ao redor do mundo, a IEC não havia
localizado, até o fechamento desta reportagem, as atas das reuniões
que decidiram pelo desenho da norma 60906-1 nem seu inventor. O que
se sabe, contudo, é que a ideia de seus criadores era acabar com a
proliferação de vários tipos de plugue e tomada nos seis
continentes. Atualmente, segundo a IEC, há ao menos 14 encaixes
diferentes no planeta.
No
dia em que se desenhou a primeira versão da tomada de três pinos,
em setembro de 1986, o Brasil estava em Genebra, representado por um
técnico do Comitê Brasileiro de Eletricidade, Eletrônica,
Iluminação e Telecomunicações (Cobei). Da Suíça, ele trouxe ao
Brasil a proposta para análise de uma comissão do comitê.
Formado
por cinco sindicatos e associações, além de 17 empresas, que vão
do setor médico-hospitalar ao de metais ferrosos e eletrodomésticos,
o Cobei, que também é chamado de CB-003, é um dos 309 comitês
técnicos da ABNT. O dinheiro para manutenção e aluguel das salas
onde funciona — hoje está sediado em uma travessa da Avenida
Paulista, em São Paulo — vem da indústria, por meio de empresas
associadas e entidades de classe.
Atualmente,
sua diretoria é formada pelo diretor-geral, João Carro Aderaldo, da
Schneider, e pelo vice-diretor-geral, Antonio Eduardo Souza, da Pial
Legrand.
Dos
mais de 300 comitês técnicos da ABNT, o Cobei é um dos mais
poderosos. Além dele, só três integram o Conselho Deliberativo da
ABNT: o CB-004 (máquinas e equipamentos mecânicos); o CB-018
(cimento, concreto e agregados); e o CB-026
(odonto-médico-hospitalar). Os comitês técnicos são numerados em
ordem cronológica, de maneira que o comitê que estuda eletricidade
foi o terceiro a ser criado na ABNT, em 1908, atrás apenas dos
comitês de Mineração e Metalurgia e da Construção Civil. De
acordo com um anúncio para associados publicado em seu site, o Cobei
é responsável por “garantir a participação ativa do Brasil”
na IEC e “assegurar que seja realizado o pagamento das anuidades da
filiação” à entidade.
A
ABNT também é formada por entidades de classe, empresas e
autarquias federais, como o Inmetro, por exemplo. Todos os associados
contribuem com a associação. Alguns mais, outros menos. Entre os
sócios mantenedores da ABNT estão os ministérios da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações, o da Indústria, Comércio
Exterior e Serviços e o da Defesa, com quem a ABNT faz convênios
para o recebimento de verbas federais. Em 2017, R$ 547.700 foram
repassados à entidade.
Das
522 comissões de estudo que já foram criadas sob o guarda-chuva do
Cobei, hoje estão ativas cerca de 160, que avaliam tecnicamente
desde turbinas de geração eólica a máquinas de lavar roupa. Em
teoria, esses pequenos grupos devem ser compostos de fabricantes,
consumidores, laboratórios e universidades ou por qualquer
interessado que comprove relação curricular com o assunto em pauta.
Na prática, contudo, boa parte é formada e supervisionada por
técnicos de grandes multinacionais que gastam algumas tardes
decidindo entre a cor verde e o amarelo, esse parafuso ou aquele
encaixe de plástico, uma folha de alumínio ou um ponteiro de aço.
A
indústria participou ativamente da escolha da tomada e dos plugues
de três pinos no Brasil. Em 1994, a Comissão de Estudo de
Interruptores, Tomadas, Pinos e Placas de Uso Geral — também
denominada CE-03:023.02 — começou a se basear na norma da IEC para
desenvolver a tomada de três pinos do jeito que é hoje. Entre 1994,
quando o padrão começou a ser desenhado no Brasil, e 1998, quando
foi lançado pela primeira vez, o número de integrantes da comissão
de estudo que o escolheu era 26 — sendo 25 empresas e entidades de
classe da indústria eletroeletrônica e do cobre e apenas um
laboratório, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel),
ligado à Eletrobras. Em quatro anos, reuniram-se cerca de 20 vezes.
“Se houve algum lobby, foi nessa época”, confidenciou um
executivo do setor elétrico que preferiu não se identificar.
“As
decisões das comissões de estudo são sempre tomadas por consenso,
não havendo votação”, afirmou Eugenio Tolstoy de Simone, diretor
técnico da ABNT, que administra todos os comitês técnicos. O
diretor da ABNT declarou que a escolha da norma da IEC pela comissão
de estudo foi “natural e lógica”. “Não houve imposição de
ninguém”, disse. “Ao se iniciar qualquer trabalho de
normalização, devemos sempre optar pela adoção de uma norma
internacional, conforme preconiza o Acordo de Barreiras Técnicas da
Organização Mundial do Comércio.”
Em
outubro de 1996, houve uma consulta pública na qual a norma NBR
14136 foi aprovada pelos integrantes da comissão de estudo com 21
sugestões. “As sugestões foram inexpressivas”, afirmou Tolstoy,
que está na ABNT desde 2002. “O único setor que reclamou desse
plugue e tomada foi o da construção civil, que na época dizia o
seguinte: ‘Espera aí, quem instala as tomadas sou eu, e vai dar um
trabalho danado’.” Instado a oferecer acesso às atas das
reuniões, Tolstoy informou que são documentos de uso exclusivo da
comissão de estudo.
Em
2006, Vicente de Paula Neves, funcionário da Pial Legrand, foi o
coordenador da comissão de estudo que escolheu se basear no padrão
da IEC. De acordo com o regimento interno da ABNT, compete ao
coordenador da comissão, além de conduzir as reuniões, indicar o
secretário, relatores e membros, receber as documentações e
revisar “técnica e ortograficamente” o texto dos projetos de
norma.
Questionado
sobre se acredita que a Pial Legrand tenha largado na frente no
comércio do novo padrão e sobre o comportamento da multinacional na
consulta pública, Tolstoy disse: “A Pial não queria que a gente
adotasse o formato igual ao da IEC. A Pial queria justamente que
mudasse o formato, e isso não foi aceito”.
José
Sebastião Viel, superintendente do Cobei e ex-funcionário das
francesas Telemecanique e Schneider, afirmou ser uma obviedade que os
franceses tenham saído na frente da fabricação e comercialização
do novo produto. “A Pial Legrand era a maior fabricante que havia
no Brasil. Ela sempre esteve na frente dos outros fabricantes daqui.
Sempre foi uma empresa com uma agilidade tecnológica muito forte.
Quem tem mais tecnologia e mais dinheiro para investir acaba saindo
na frente.”
Representante
de empresa nega que houve lobby de fabricantes de tomadas
Funcionário
da Pial Legrand desde 1993, Antonio Eduardo Souza negou a tese de
Sprovieri peremptoriamente, mas admitiu: “Realmente a ambição era
que a norma da IEC se tornasse um padrão mundial. A Europa queria
que fosse norma de padronização mundial de tomadas”
Souza
foi o maior representante da Pial Legrand durante as discussões
sobre a implantação do padrão no Brasil. Negou que tenha havido
lobby da indústria na decisão de obrigar à utilização da NBR
14136. “Seria um baita tiro no pé. A indústria não criaria um
lobby para se obrigar a fazer grandes investimentos para se adequar à
obrigatoriedade do Inmetro.
Souza
também é categórico ao rebater a acusação de que a Pial Legrand
teria trazido os moldes da França para o Brasil: “Isso é uma
falácia. Os moldes foram fabricados de acordo com o cronograma de
implementação da norma”. Segundo ele, parte dos investimentos da
Pial Legrand à época se deu justamente na fabricação de novos
moldes. “Um molde de injeção plástica pode custar entre R$ 100
mil e R$ 130 mil. Em uma linha de tomada, por exemplo, há mais de um
molde, incluindo tampa e tomada.” Para cada linha de produto,
segundo Souza, gastam-se de R$ 200 mil a R$ 300 mil. “Se você tem
dez produtos, são R$ 3 milhões só em moldes”, completou. “A
indústria não ganhou tanto dinheiro assim porque os pinos antigos
quase todos cabiam em tomadas antigas e também nas novas.”
Confrontada
com a tese de Sprovieri, a Pial Legrand negou que tivesse os moldes
da tomada de três pinos antes de sua implementação no Brasil.
“Parece teoria da conspiração”, disse Carlos Eduardo Nonato,
gerente de marketing da multinacional desde 2010. “Todos os
fabricantes tiveram de se adaptar e todos sofrem, até hoje, com as
reclamações de clientes e com a especulação de tentar achar um
culpado para essa mudança”, acrescentou o diretor de marketing da
empresa, Demetrius Basile.
Os
fabricantes de adaptadores formam outro grupo entre os que ganharam
dinheiro com a adoção do plugue jabuticaba nacional. No fim dos
anos 2000, quando o escalonamento de prazos expedidos pelo Inmetro já
havia criado algum efeito na indústria, e os eletrodomésticos
certificados costumavam sair das fábricas padronizados, o plugue na
norma NBR 14136 passou a aparecer com mais frequência nas casas dos
brasileiros. Milhares de consumidores se viram obrigados a comprar
adaptadores para dar vida a eletrodomésticos recém-adquiridos.
Nove
meses depois da data final para o varejo se adaptar ao padrão
obrigatório, uma empresa familiar já havia se valorizado em milhões
de reais. A Daneva foi fundada por Juliano Filippelli Neto — que
também participou da comissão da ABNT que estudou a tomada de três
pinos — em 1978 em Poá, na Grande São Paulo. Era líder de vendas
de extensões e adaptadores no Brasil. Em abril de 2013, alterou seu
capital social, passando-o de R$ 700 mil para R$ 24 milhões — um
salto de 3.328%. Um mês depois, em uma reunião registrada na Junta
Comercial de São Paulo, a Pial Legrand adquiriu 51% da empresa por
R$ 66 milhões. Dois anos mais tarde, em julho de 2014, comprou os
49% restantes por R$ 65 milhões. A multinacional francesa novamente
se beneficiou da tomada de três pinos.
A
aquisição faz parte de sua estratégia no Brasil. Em 2006, a Pial
Legrand comprou a Cemar, líder do mercado de quadros de
distribuição. Em 2008, a HDL, líder no segmento de porteiros
eletrônicos. Em 2010, a SMS, líder no mercado de nobreaks. “É
uma estratégia de crescimento lateral por meio da aquisição de
empresas que estejam alinhadas com nosso portfólio de produtos”,
disse Antonio Eduardo Souza, que hoje dirige a fábrica da Daneva.
Marcelo
Filippelli, antigo sócio-proprietário da Daneva, afirmou que a
diferença estratosférica no capital social da empresa surgiu de
lucros acumulados. “Foi feita uma atualização de capital para
efeito de menos gasto com imposto. Os lucros que não tinham sido
distribuídos foram integralizados no capital social. Foi uma
operação contábil que a gente fez porque já estávamos com a
venda fechada para a Pial Legrand. Você paga menos Imposto de Renda
se tem seu capital social mais alto. Não tem nada a ver com
investimento, padronização, com ganho de dinheiro, com lucro, nada
disso.”
A
polêmica da tomada de três pinos ganhou fôlego em 2006, quando o
Congresso aprovou o Projeto de Lei 1.096, de 1995. De autoria do
então deputado Freire Júnior, a lei obrigou imóveis construídos a
partir de outubro daquele ano a ter “sistema de aterramento e
instalações elétricas compatíveis com a utilização do
condutor-terra de proteção, bem como tomadas com o terceiro contato
correspondente” e tornou obrigatório o plugue de três pinos em
aparelhos eletroeletrônicos com carcaça metálica, como
micro-ondas, geladeiras e máquinas de lavar.
Sem
aterramento na maior parte dos imóveis brasileiros, o terceiro pino
da tomada não tem utilidade alguma na prevenção de cargas ou
redução de choque
O
fato de Lula ter sancionado a lei a três meses do fim do primeiro
mandato como presidente da República colocou internautas em
polvorosa. Já naquela época, teorias da conspiração em forma de
fake news surgiram na rede, e não demorou para que um filho de Lula
levasse a culpa pela tomada de três pinos. Acusaram Fábio Luís
Lula da Silva, o Lulinha, de ter direitos sobre a patente da tomada —
uma falácia, já que a patente de uma invenção, quando se torna
norma internacional, é derrubada pelas regras dos normatizadores.
Freire
Júnior, que hoje é suplente de deputado pelo Tocantins, disse que
teve a ideia de propor a lei depois de uma conversa com um amigo de
infância. “No passado, nós dois tivemos videocassetes queimados
por falta de aterramento elétrico”, disse.
Na
Rua Santa Ifigênia, maior polo do comércio eletroeletrônico de São
Paulo, o empresário Felipe Abduch, proprietário da loja de materias
elétricos Santil, disse que a francesa Pial foi a primeira a colocar
tomadas de três pinos no mercado. “Eles estavam mais preparados
para seguir as novas exigências. Depois vieram os concorrentes, a
Schneider, a Siemens e a Tramontina.”
Quando
os deputados Sandro Alex (PPS-PR) e Bruno Araújo (PSDB-PE) decidiram
convocar uma reunião na Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados para esclarecer
os motivos da obrigatoriedade da tomada de três pinos no Brasil,
João Viel, o superintendente da Cobei, foi convidado a participar
como representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI),
mas não pôde ir. Enviou em seu lugar Antonio Eduardo Souza, da Pial
Legrand.
As
desconfianças sobre a tomada de três pinos reverberaram no
Congresso em 7 de junho de 2011, a menos de um mês de o padrão se
tornar obrigatório. Os argumentos favoráveis à padronização —
entre eles a redução no consumo de energia, mais segurança contra
choques elétricos, proporcionada pelo novo relevo das tomadas, e
prevenção contra incêndios — eram rebatidos, à época, com
argumentos de que a maior parte dos imóveis não dispunha de
aterramento elétrico e boa parte dos eletrodomésticos era dotada de
um sistema de proteção interna contra curtos-circuitos, de modo que
o terceiro pino ficaria sem utilidade. Apontava-se também o baixo
índice de choques no país, o que não justificaria uma mudança, a
insegurança ocasionada pelo aumento no uso de adaptadores e o peso
no bolso do consumidor.
O
deputado Bruno Araújo, que presidia a Comissão de Ciência e
Tecnologia em 2011, seguiu na mesma linha: “A coisa parecia fato
consumado, lembro que na época não me convenci nem me dei por
satisfeito. Havia uma grande desinformação da sociedade sobre qual
seria de fato a utilidade desse investimento de centenas de milhões,
se não fosse de bilhão, de mudar todo o sistema nacional”.
O
presidente do Inmetro e da ABNT foram convidados ao encontro, mas
enviaram subordinados. “Eles ficaram essencialmente no foco da
segurança”, lembrou Araújo. A reunião durou duas horas.
“A
tomada de três pinos veio muito mais da imposição do governo e do
Inmetro”, disse o deputado Sandro Alex ao rememorar a reunião no
Congresso. “A gente percebia que tinha alguma coisa errada nessa
história. A decisão estava tomada. Muito se comentava de que tinha
um caroço no angu.”
Em
2010, a Daneva doou R$ 50 mil a José de Souza Cândido, candidato do
PT a deputado estadual em São Paulo, hoje falecido. Já a SMS
Tecnologia Eletrônica doou, no mesmo ano, R$ 24 mil a José de
Filippi Junior, candidato a deputado federal do PT por São Paulo; R$
5.700 a Joel Fonseca Costa, candidato do PT a deputado estadual em
São Paulo; além de R$ 2 mil a Paulo Skaf, que concorria ao governo
paulista pelo PSB. Nas eleições de 2014 e 2016, nenhuma empresa do
grupo Legrand colaborou com candidatos.
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