Antes
de falar sobre democracia, precisamos defini-la, já que se trata,
talvez, da unanimidade menos inteligível existente.
Por
Leandro Ruschel
Falar
mal da democracia virou, praticamente, um pecado secular. Num
primeiro momento, podemos definir democracia como o governo do povo.
Soa bem. Definição suficientemente vaga para gerar apoio
generalizado dos incautos, explorados pelos demagogos. Mas, deixemos
o cinismo de lado. Vamos detalhar o conceito na sua manifestação
mais benigna: democracia é um sistema de governo onde o poder é
exercido pelo povo através de seus representantes eleitos
livremente, que votam as regras pelas quais tal povo opera, onde há
garantia de certos direitos humanos básicos, como liberdade de
expressão, de culto, associação e propriedade privada, onde todos
são tratados de forma igual diante da lei e há a liberdade de
prosperar por livre iniciativa. O Estado de Direito decorrente desse
arranjo, nada mais é do que a imposição das leis, de forma justa e
igualitária.Aristóteles
tem uma definição mais negativa de democracia. Para ele, a
democracia representa uma espécie de ditadura da maioria. Em outras
palavras, quando o povo detém o poder de fato, ele pode utilizá-lo
para saciar seus piores instintos. Pense em assalto ao direito de
propriedade em nome da “igualdade”, além do afrouxamento de
regras morais em nome da “liberdade”, da condenação daqueles
que produzem riqueza e a idolatria dos malandros. Por outro lado, ele
chama um regime onde a maioria manda para o bem de todos, buscando um
nível moral mais elevado, de politeia,
conceito traduzido por Cícero como res
publica,
“bem público”, a nossa República. Fica claro que muita gente
usa o termo democracia, quando na verdade está se referindo a um
regime republicano.
De
qualquer forma, feita essa introdução etimológica, podemos usar o
termo “democracia” na sua manifestação republicana, por assim
dizer.
Podemos
afirmar, sem dúvida alguma, que não temos um regime democrático no
Brasil. Em primeiro lugar, não há de se falar em eleições livres
num sistema de tal forma complexo que poucos representantes são
eleitos pelos votos dos representados, mas sim por um associação
entre votos no partido e no candidato; dependo do local que você
habita, o seu voto vale mais ou menos em representação. Além
disso, os candidatos, de uma forma geral, não apresentam suas
ideologias, para que o eleitor possa votar em quem de fato represente
as suas ideias. Os partidos apresentam uma verdadeira salada de
frutas ideológica, onde o único objetivo em comum é alcançar o
poder e dele se locupletar. Há um agravante: o próprio sistema de
votação, eletrônico, é passível de fraudes. Quando os
representantes do povo decidiram, de maneira correta, melhorar esse
sistema, criando o recibo de voto impresso, a Justiça resolveu
impedir tal mudança.
Mais,
as dezenas de partidos existentes recebem verbas públicas para fazer
suas campanhas, estabelecendo uma esmagadora vantagem sobre aqueles
que estão de fora do usual jogo de cartas marcadas, já que as
doações pessoas são limitadas por lei. Se um cacique partidário
não gostar de um candidato, ele não conseguirá nem mesmo
concorrer, pois não há candidatura avulsa.
Depois
de ter que escolher entre nomes pré-selecionados pelos partidos de
sempre, o eleitor observa seus representantes eleitos, seja a nível
municipal, estadual ou federal, se debruçarem ao trabalho de tirar o
máximo benefício próprio do cargo, de forma legal e ilegal. Ou
seja, nesse sentido, temos a definição aristotélica de Oligarquia,
o governo de poucos em benefício deles próprios.
Na
busca de vantagens, manutenção do poder ou dinheiro mesmo, os
representantes não estão sozinhos. Eles têm outros setores da
elite ao seu lado, prontos a se beneficiarem de crédito, contratos e
verbas de todo o tipo para repartirem com os seus sócios no poder,
como bem demonstrou a Lava Jato, usando como base o aumento
sistemático de tributos. Regras são criadas para beneficiar quem
participa do esquema, e impedir que eles sejam ameaçados por novos
entrantes no mercado. Segundo Palocci, foram centenas de milhões de
reais em propinas para que o governo aprovasse uma série de medidas
provisórias, prontamente aprovadas pelos parlamentares, cada um
deles regiamente pago pelo esquema. Tal arranjo pode ser chamado de
“capitalismo de compadrio”.
Obviamente,
todo esse esquema só pode funcionar se o povo estiver minimamente
contente com a sua própria situação, mesmo sendo enganado pela
elite, já que temos a cobrança de impostos altíssimos com a
entrega de péssimos serviços em retorno. Mas, na democracia
ilusória, receber um Bolsa Família ou um financiamento Minha Casa,
Minha Vida, parece ser um grande negócio.
Tais
ilusões são mais fáceis de serem mantidos em momentos de ciclos
econômicos positivos, como aquele que Lula atravessou no início da
década passada. Em tempos de bonança, você pode se endividar e
comprar a felicidade geral da nação, com bilhões para os sócios
no poder, e migalhas para as massas.
Mas,
como diria Thatcher, o socialismo acaba quando acaba o dinheiro dos
outros. Foi exatamente quando a bonança acabou que a conta chegou,
favorecendo as condições para que as células ainda saudáveis da
estrutura política do país pudessem expor toda a podridão do
sistema, corrompido até a medula. A crise econômica resultante da
ilusão econômica produzida por Lula foi tão intensa que tivemos
uma década perdida, enquanto o mundo inteiro cresceu. A marolinha
virou um tsunami que engolfou toda a sociedade brasileira.
Justamente
por estar quase completamente corrompido é que o sistema se manteve
de pé. Várias figuras importantes caíram, como o próprio Lula
(líder político da quadrilha), e Odebrecht (líder empresarial da
quadrilha), além de vários outros. Mas um número ainda maior de
bandidos manteve a sua posição na estrutura do poder. O próprio
projeto gramsciano de poder, colocado em prática pela esquerda
brasileira, garante o controle da máquina pública mesmo com uma
derrota eleitoral.
Toda
a indignação popular foi canalizada na última eleição
presidencial para um candidato que não participou, ao longo da sua
vida, dos esquemas expostos pela Lava Jato. Além disso, foi o
primeiro candidato em muito tempo a assumir posturas conservadoras,
representando a maioria do povo brasileiro. Porém, sem respaldo num
partido estruturado, tampouco contando com uma militância
organizada, sua posição na estrutura de poder é tênue, já que é
visto como ameaça por quase todos em Brasília, que não esperaram
nem a sua cadeira esquentar para tentar derrubá-lo, como
confidenciou o presidente do STF.
Sem
partir para uma ruptura mais profunda num sistema completamente
corrompido, o novo governo passou a atuar dentro das limitações
impostas pelo próprio sistema republicano de divisão de poderes,
pensado por Montesquieu para evitar o totalitarismo, não para manter
de pé um regime corrupto, como tem acontecido no Brasil. Numa
subversão diabólica dessa ideia, observamos o Senado deixando de
fiscalizar o Supremo, que por sua vez, arquiva todos os processos de
corrupção de senadores que chegam até a corte. Também observamos
o Legislativo chantageando o Executivo para aprovar reformas urgentes
ao país. Talvez tenha sido isso que José Dirceu tenha sugerido,
quando disse, durante as eleições: “vamos tomar o poder, o que é
muito diferente de ganhar uma eleição”.
Como
diria Thomas Jefferson, não devemos nos revoltar com facilidade,
querendo derrubar um sistema estabelecido por motivos fúteis, mas
chega num ponto que não há outra forma de viver de forma digna e de
haver a possibilidade de dias melhores, sem uma mudança mais
profunda.
Ficou
claro nas últimas semanas o colapso completo da democracia
representativa brasileira e do Estado Direito. Num esforço
coordenado, a imprensa se utilizou de vazamento de conversas privadas
de membros da Lava Jato para questionar condenações dos corruptos
pegos no maior esquema de corrupção já desbaratado na história
humana moderna. Utilizando a falsa narrativa de “abuso” de
autoridade na Lava Jato, parlamentares votaram uma lei para
dificultar o trabalho de juízes, promotores e procuradores na
investigação de crimes, não apenas os cometidos por políticos,
mas por qualquer criminoso. O Supremo Tribunal Federal, que deveria
ser o guardião da Lei e da Ordem, passou a tomar decisões em série
para anular condenações e dificultar as investigações em aberto.
Ou seja, temos os supostos representantes do povo votando uma lei
para se proteger da justiça, que por sua vez, liberta da cadeia os
poucos corruptos que foram presos! Como alguém pode ter coragem de
chamar isso de democracia?
Em
outras palavras, ao querer acreditar na fábula de um sistema
corrompido se auto purificar, fomos agraciados com uma situação
ainda pior do que anterior: não só temos um sistema podre, mas
agora temos novas leis e procedimentos que impedem qualquer limpeza.
O
único ponto positivo de tal desdobramento é que a farsa acabou.
Agora, não é mais possível usar o argumento da ignorância para
justificar o silêncio. O Congresso é formado por uma maioria de
corruptos. O STF opera para proteger tais corruptos e outros
integrantes do esquema. A imprensa, corrupta, trabalha para
justificar tais decisões, ao invés de denunciá-las.
Ou
se parte para exigir a refundação do Brasil, com a retirada da vida
pública, para sempre, dos bandidos que nela operam, ou há dois
caminhos possíveis: a melhora da economia gera a volta do teatro,
numa espécie de fantasia voluntária, ou teremos um estado crescente
de revolta, que exigirá do sistema corrupto um nível cada vez maior
de repressão, como aconteceu na Venezuela. O desejo repressivo já
está dado, como o inquérito ilegal e imoral, aberto pelo presidente
do STF, com o manifesto objetivo de silenciar críticos e até mesmo
de censurar a imprensa que se nega a participar da farsa em marcha.
Até mesmo medidas positivas, como a Reforma da Previdência, só
avançam pela expectativa de melhora da economia e diminuição de
pressão sobre os políticos. Mesmo assim, aos trancos e barrancos.
No
final, tudo dependerá da postura dos militares. Se eles toparão
participar desse teatro, até o ponto de ter que reprimir a população
em algum momento, partindo para uma ditadura escancarada, ou
resolverão participar de um processo de refundação do país. Há
muitos fatores em jogo, que não dependem apenas da situação
econômica interna, mas também da situação internacional; por
enquanto vejo como cenário mais provável uma acomodação no curto
prazo, escondendo, por mais algum tempo, como numa panela de pressão,
o sentimento de profunda revolta de parte significativa da população,
que pode até mesmo ser manipulado, quando explodir, para
consolidar a Cleptocracia vigente, talvez a melhor definição do
sistema político brasileiro.
Fonte: Conexão Política
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