Por: Luiz Fernando Ramos Aguiar
O rapper Ouruam, filho do traficante Marcinho VP, tem se tornado o centro de uma discussão sobre o financiamento público a iniciativas culturais, no mínimo, estranhas. Conhecido por suas letras que exaltam a estética e o modo de vida de traficantes e faccionados, seu nome se tornou o símbolo de uma série de iniciativas legislativas que têm como alvo o financiamento público de eventos “culturais e artísticos” que envolvam temas como a glorificação de criminosos ou a apologia a atividades ilícitas.
Mas, como todas as discussões em curso no Brasil, esta também foi tomada pela defesa apaixonada de posicionamentos motivados pela adesão a torcidas políticas. Enquanto os progressistas têm acusado as iniciativas de serem uma forma de preconceito contra a cultura da periferia, o pessoal mais à direita tem exaltado os projetos como uma cruzada contra a cultura criminal. Como de costume, a maioria dos debatedores sequer se dá ao trabalho de ler os textos das proposições e se dedica a proferir absurdos como estratégia para seduzir sua audiência cativa e atacar seus opositores políticos.
O gênero musical conhecido como trap, uma variação bizarra do rap, tem ganhado popularidade nos últimos anos no Brasil. O foco “artístico” desse movimento é fundamentado em letras que misturam ostentação, conteúdo sexual explícito e apologia ao crime. Todos esses elementos são combinados de forma vulgar, com uma estética duvidosa, recheada de referências ao crime organizado e à cultura de gangues e facções criminosas.
QUEM É ORUAM
Oruam, que tem mais de 8 milhões de seguidores nas redes sociais, se tornou um ícone desse movimento. Além de despejar seu lixo musical nos ouvidos de uma legião de fãs hipnotizados, ele possui uma história que legitima sua posição dentro da cultura trap. Filho do traficante Marcinho VP, condenado a mais de 50 anos de prisão, ele costuma defender a libertação do pai sob a justificativa de que já teria cumprido sua pena. Nada incomum—qualquer filho gostaria de ter a oportunidade de conviver com seu pai. O problema é que, ao contrário do que poderíamos imaginar, Oruam não se envergonha do passado sombrio do pai. Na verdade, ele exalta o modo de vida do criminoso e o trata como um herói, chegando a tatuar o rosto do pai em seu corpo.
Outro personagem que é membro da família do artista é o assassino do jornalista Tim Lopes, conhecido como Elias Maluco, tio de Oruam. Seu tio também mereceu um registro na pele do cantor, mesmo tendo sido condenado pelo esquartejamento e incineração do jornalista, que investigava o abuso de meninas obrigadas a participar de eventos promovidos por traficantes.
Conhecendo a estética e as motivações do movimento trap, para a maioria das pessoas, parece inconcebível que dinheiro público possa ser empregado para promover eventos dessa natureza. Mas, como o Brasil não é para amadores, esses eventos não encontram barreiras legais para seu financiamento público, que é justificado como incentivo à cultura. A principal motivação da chamada Lei Anti-Oruam seria impedir que a apologia ao crime e a promoção da vulgaridade sejam incentivadas com recursos dos pagadores de impostos.
O PROJETO E SUAS REPERCURSSÕES
Em resposta a esse movimento, a vereadora paulistana Amanda Vettorazzo (União Brasil) apresentou, nesta semana, um projeto de lei que impede a contratação de artistas que fazem apologia ao crime ou às drogas com recursos da prefeitura. A vereadora direcionou a iniciativa ao rapper Oruam, conforme declarações da própria autora do projeto:
“No que depender de mim, artistas como o Oruam ficarão proibidos de fazer show aqui na cidade de São Paulo com o meu e com o seu dinheiro, como na Virada Cultural.”
Mas a Virada Cultural de 2024 contou com outros artistas dedicados à nobre arte de exaltar o consumo de drogas e o crime. Com um gasto de aproximadamente R$ 60 milhões, o evento contou com a presença de estrelas do gênero, como Matuê, a dupla WIU e Teto e MC Lipi—tudo pago com os escassos recursos dos pagadores de impostos da cidade de São Paulo. Quem poderia pensar em uma forma mais eficiente para promover a cultura e a arte?
O mais impactante em toda essa história foi a reação indignada de Oruam, que utilizou suas redes sociais para responder a vereadora. Em publicações no Instagram, além de chamar Amanda, carinhosamente, de “doente mental” e “idiota”, o artista marcou o perfil de Amanda e conclamou uma ofensiva de seus seguidores:
“Tropa do 22 vamos dar fama pra ela”
O resultado foi que sua legião de fãs iniciou uma sequência de ameaças virtuais a vereadora que chegou a registrar uma ocorrência policial sobre o caso.
Outro efeito curioso do conflito foi que a iniciativa da vereadora paulistana começou a ser imitada por vários outros legisladores pelo país. De acordo com a autora do projeto, dezenas de vereadores de todo o Brasil a procuraram com o interesse de replicar a lei em suas cidades.
A ADOÇÃO DO PROJETO PELO BRASIL
O projeto também já está na Câmara dos Deputados. O deputado Marcelo Álvaro Antônio (PL-MG) propõe uma lei que impõe sanções sobre o valor de contratos com artistas que façam apologia ao crime organizado. O projeto de Amanda Vettorazzo estabelece uma multa de 100% sobre o valor do contrato, enquanto a proposta do deputado fixa a penalidade em 50%.
Outro parlamentar que também está se enveredando por esse caminho é Kim Kataguiri (União Brasil). Colega de MBL da vereadora Amanda, o deputado quer modificar a Lei das Licitações, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), passando a proibir incentivos a eventos que promovam apologia ao crime e ao uso de drogas. A proposta já conta com o apoio de 45 deputados.
O próprio prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), já se antecipou, afirmando que a capital paulista não permitirá apologia ao crime em hipótese alguma, quando comentou sobre o projeto da vereadora Amanda.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
As reações à lei acenderam um debate sobre liberdade de expressão. Artistas e produtores culturais consideram que a medida representa um potencial limite à criatividade e à diversidade cultural. No entanto, é preciso considerar que o projeto não impõe censura nem limita o espectro de assuntos que podem ser abordados em composições artísticas—ele simplesmente restringe o financiamento público a eventos que promovam apologia ao crime.
Entretanto, uma questão que precisa ser levada em conta é: como e quem serão os responsáveis pela análise e avaliação dos artistas e composições candidatas ao incentivo governamental? Talvez essa seja a maior fragilidade das legislações desse tipo, já que, para determinar se uma música ou um artista está ou não fazendo apologia ao crime, sempre será necessário o julgamento humano—influenciado por crenças, ideologias e inclinações políticas. Dependendo do viés adotado, a emenda pode sair pior do que o soneto.
O PROBLEMA CENTRAL
Mas a verdade é que toda essa discussão é completamente inútil. Não existe nenhuma possibilidade racional de se considerar aceitável o incentivo público à apologia ao crime, principalmente por meio de eventos culturais. Se nossa sociedade estivesse minimamente saudável, nenhum agente público teria a coragem de organizar eventos artísticos com personagens tão ambíguos como o rapper Oruam.
O bom senso e o respeito à coisa pública deveriam ser elementos suficientes para considerar que, em um país que vive uma profunda crise de criminalidade, não se pode usar os escassos recursos dos impostos para promover artistas ou manifestações culturais que exaltam exatamente as forças criminosas responsáveis por essa crise.
Mas o problema no Brasil é muito mais profundo. O sucesso crescente de um movimento cultural que exalta o estilo de vida criminoso, a vulgaridade e a ostentação do luxo como os bens supremos de sua arte é um grave sintoma de uma infecção social que precisa ser combatida com urgência. E muitos dos agentes responsáveis pela disseminação dessa praga estão alojados nos palácios, gabinetes, câmaras legislativas e fóruns de todo o país, onde medidas de tolerância ao crime são criadas, promovidas e implantadas como se fossem o antídoto para a injustiça, a desigualdade e a opressão.
Cooptados por teorias sociais ilógicas e contraditórias, bem como pelas ideologias mais mortais já colocadas em prática no planeta, esses agentes acreditam estar promovendo um bem supremo ao propor leis, medidas administrativas e políticas que beneficiam criminosos em detrimento de suas vítimas—tudo em nome de uma utópica justiça social.
Mas os agentes públicos não são a origem primeira dessa inversão de valores. As teorias e ideologias que fundamentam a criação de leis e políticas permissivas à glamorização do crime nascem nas comunidades acadêmica e intelectual, responsáveis pela formação dos políticos e autoridades que ocuparão os cargos-chave do país.
Formados nesse ambiente envenenado, ao assumirem suas posições de autoridade, essas pessoas acabam replicando os ideais que absorveram durante sua formação profissional e intelectual.
Como jornalistas e demais profissionais da mídia também são formados nos mesmos ambientes que nossas autoridades, acabam adotando a mesma linha de pensamento vigente nas estruturas do Estado. Por isso, observamos o engajamento da maior parte dos membros do mainstream na defesa de personagens como Oruam e de movimentos como o Trap, mesmo diante das mais sólidas evidências do prejuízo intelectual e da pobreza artística desse tipo de manifestação.
O projeto da vereadora Amanda Vettorazzo não terá impacto significativo sobre os artistas que se dedicam à glamorização do crime. Infelizmente, as pessoas continuarão a consumir esse tipo de conteúdo, entorpecidas pelos cenários hedonistas propagados por artistas como Oruam. Se bem executado, o projeto pode, pelo menos, reduzir o uso de dinheiro público na promoção desse tipo de manifestação artística—o que já representa algum avanço.
Mas a mudança do ambiente cultural brasileiro não irá mudar simplesmente pela assinatura de mais uma lei, principalmente em nosso país onde existe um histórico de leis que não “pegam”. Mesmo que legislações fossem intensamente aplicadas nesse sentido a mudança real só vira de uma retomada da cultura e da modificação dos padrões estabelecidos. E isso só pode acontecer a partir de um movimento orgânico, oriundo da própria sociedade, através de processos longos e educação sob novas perspectivas que, no momento são marginalizadas no Brasil.
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