Matéria retirada do ar apontava esquema que, segundo a PF, poderia derrubar diversas instituições financeiras; investigações revelam como aposentados eram enganados para contratar empréstimos consignados não solicitados.
Uma reportagem publicada pela Revista Veja, na última sexta-feira (23), sobre supostas fraudes bilionárias no crédito consignado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), foi removida do ar poucas horas após sua divulgação. A matéria atribuía a dezenas de instituições financeiras participação em um esquema que, segundo alertas da Polícia Federal (PF), teria potencial para abalar a estrutura do sistema bancário brasileiro.
De acordo com o conteúdo original da reportagem, amplamente replicado por veículos como o portal The News, uma reunião entre o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o vice-presidente da Corte, Edson Fachin, e o chefe da Controladoria-Geral da União (CGU) foi marcada por um grave alerta da PF: caso as investigações avancem plenamente, “não vai ficar banco de pé”. A frase atribuída a investigadores sugere a dimensão e a gravidade do esquema em apuração.
Segundo a matéria excluída, entre 2020 e 2025, 91 instituições financeiras receberam autorização para operar crédito consignado com aposentados e pensionistas do INSS, mediante Acordos de Cooperação Técnica (ACTs). O modelo, embora previsto legalmente, teria servido de base para irregularidades que resultaram em descontos indevidos sobre benefícios previdenciários.
O funcionamento do esquema
Apesar da remoção da reportagem original, outros veículos jornalísticos, como o Metrópoles, detalharam a mecânica das fraudes. Entre os bancos citados nas investigações estão o BMG e o C6 Bank, apontados como alguns dos mais acionados judicialmente em processos relacionados à concessão irregular de crédito consignado.
O modus operandi revelado pelas apurações envolve a empresa “Balcão das Oportunidades”, ligada ao Banco BMG. A organização teria induzido aposentados a fornecer informações pessoais sob o pretexto de oferecer vantagens financeiras, para então forjar contratações não solicitadas de crédito consignado ou filiações a associações de fachada.
O procedimento seguia um padrão: operadores da Balcão das Oportunidades realizavam chamadas telefônicas para aposentados, informando sobre supostos créditos aprovados e solicitando confirmações de dados. Posteriormente, essas gravações eram manipuladas para aparentar que as vítimas autorizaram a contratação de serviços financeiros ou adesão a programas que resultavam em descontos indevidos.
Quando os aposentados detectavam descontos irregulares em seus contracheques e buscavam esclarecimentos, eram confrontados com documentos forjados e gravações adulteradas, apresentadas como “provas” de consentimento.
O caso de Maria do Carmo
Um dos casos emblemáticos expostos pela imprensa é o de Maria do Carmo Gonçalves Lara, 77 anos, aposentada, que recebeu uma ligação de um suposto atendente da Balcão das Oportunidades. O interlocutor informou a existência de uma parcela mensal de R$ 287,83, descontada de sua aposentadoria. Mesmo desconfiada, Maria confirmou alguns dados, até que um parente assumiu a ligação, encerrada logo depois.
Pouco tempo após o contato, a aposentada percebeu que sua folha de pagamento passou a registrar descontos de um cartão de crédito consignado que, segundo ela, jamais solicitou ou desbloqueou. O Banco BMG, por sua vez, anexou comprovantes de saques e sustentou que Maria teria utilizado o serviço, destacando, curiosamente, um saque no mesmo valor citado na ligação suspeita: R$ 287,83. O processo judicial foi arquivado por ausência de perícia conclusiva.
Redes de fachada e movimentações financeiras
De acordo com o Metrópoles, há múltiplos relatos com abordagens similares, nas quais aposentados são induzidos a fornecer informações sob falsas promessas. O padrão envolve também a participação de netos ou familiares, chamados ao telefone para intermediar a conversa, reforçando o caráter fraudulento do esquema.
No centro das investigações figura o empresário Maurício Camisotti, suspeito de controlar entidades de fachada como a Ambec e o Cebap. Essas organizações movimentaram mais de R$ 40 milhões, repassando aproximadamente R$ 9 milhões à Balcão das Oportunidades. As gravações manipuladas eram utilizadas para respaldar judicialmente a legalidade dos descontos, embora ao menos um magistrado tenha detectado a falsidade do material.
Consequências e reações
Em nota oficial, o Banco BMG informou a suspensão imediata da Balcão das Oportunidades como correspondente bancário e reiterou “repúdio veemente” às práticas denunciadas. A instituição também comunicou o reforço de seus processos internos, com destaque para a implementação de verificações biométricas.
Maurício Camisotti, por sua vez, nega envolvimento em qualquer fraude e afirma ter contratado auditoria independente para apurar os fatos. A Ambec sustenta que eventuais irregularidades ocorreram por iniciativa de terceiros.
As investigações resultaram na deflagração da Operação Sem Desconto, conduzida pela Polícia Federal, que cumpriu 211 mandados de busca e apreensão, efetuou seis prisões e culminou na exoneração do então ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, poucos dias após as diligências.
Perspectiva de CPMI e os próximos passos
Apesar da pressão de parlamentares da oposição, que defendem a instalação imediata de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para aprofundar as investigações, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, sinalizou que o tema só será apreciado no segundo semestre deste ano. A justificativa é não interferir nas apurações em curso, conduzidas pela Polícia Federal e pela CGU.
A dimensão do esquema e o volume de recursos envolvidos garantem que o assunto seguirá no centro do debate político e jurídico nos próximos meses, especialmente diante da possibilidade de responsabilização de dezenas de instituições financeiras e da necessidade de revisão dos procedimentos para concessão de crédito consignado no país.
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