Felipe G. Martins / Senso in Comum
Os
presidentes de duas potências nucleares inimigas se encontram.
Entenderíamos melhor o encontro de Trump com Putin se a mídia não
estivesse obcecada em falar de hackers russos. Por Filipe G. Martins.
Ocorreu
hoje em Helsinque uma Cúpula EUA-Rússia. O encontro entre Vladimir
Putin e Donald Trump é a quarta deste tipo realizada na capital
finlandesa, onde também ocorreram encontros entre Ford e Brezhnev
(1975), Bush e Gorbachev (1990) e Clinton e Yeltsin (1997).
Como
se esperava, após a conferência de imprensa, os mesmos jornalistas
e comentaristas que ignoraram o esquema ilegal de venda de urânio
americano para a Rússia encabeçado pelos Clintos, e que fingiu não
ouvir o Obama prometendo beneficiar os russos e suavizar as coisas
para o Putin após sua reeleição, agora criticam o Trump por não
querer declarar guerra baseado na desculpa do establishment para a
derrota da Hillary e no fato banal de que, surpresa!, espiões russos
fazem espionagem em benefício da Rússia — como se a atividade de
inteligência e contra-inteligência não fosse corriqueira nas
relações internacionais e como se isso não fosse um dos elementos
mais antigos da política.
Não
caia nessa conversa e não compre o discurso de quem usa neocons e o
pessoal do #NeverTrump para
dizer que até conservadores concordam com essa leitura. Os desafios
que o Trump enfrenta em relação à Rússia são muitos e muito
sérios, e e ele está coberto de razão ao não se deixar contaminar
pela histeria da grande mídia e em ser cauteloso e prudente ao
enfrentar cada um desses desafios.
Se
eliminarmos o falatório e os ruídos, veremos que a relação
bilateral dos EUA com a Rússia continua sendo regida pelos mesmo
imperativos geopolíticos e estratégicos de sempre, com a diferença
de que o Trump representa para o Putin e para os russos um desafio
maior do que qualquer outro que eles já enfrentaram.
Para
compreender melhor o que está se passando é importante entender
que, geopoliticamente, a Rússia não representa nada muito diferente
do que a URSS representava. Houve ajustes e correções estratégicas,
mas Moscou continua liderando uma força anti-hegemônica
(anti-americana, na realidade) e possuindo o seu próprio projeto
globalista.
Isso
significa que é necessário buscar a paz com a Rússia e arcar com
as responsabilidades inerentes ao fato das duas nações serem as
maiores potências nucleares do mundo, sem se esquecer desses fatos e
sem ignorar que dificilmente será possível compatibilizar os
objetivos e interesses das duas nações.
Significa
também que é preciso olhar não para o falatório do público ou
para as convicções e intenções declaradas dos agentes políticos,
mas para o histórico da relação e para a realidade geopolítica
subjacente.
Isso
é particularmente importante porque não há relação em que a
geopolítica é tão determinante quanto as relações entre os EUA e
a Rússia. Há anos, os imperativos geopolíticos esmagam as
intenções subjetivas dos agentes políticos e se impõem de modo
brutal.
Essa
constante se revela no fato de que, normalmente, o contato inicial
entre um presidente americano e sua contraparte russa é positivo e
promissor, mas logo descamba para as tensões e para o atrito.
Portanto,
se o Presidente Donald Trump for capaz de dobrar esses imperativos, e
de fazer isso em um ambiente em que os Democratas e a mídia fizeram
de tudo pra tornar a paz tóxica, ele provará que tem a força
político-histórica de um Churchill, de um Napoleão e de um
Alexandre, o Grande; provará que está na esfera das raras
personalidades que possuem uma agência histórica consciente.
Para
fazer isso, Trump terá de ser pragmático e se orientar pela ética
da responsabilidade, evitando as armadilhas dos inimigos internos e
externos e, ao mesmo tempo, evitar uma posição ingênua frente ao
projeto eurasiano e à astúcia do Putin; terá, em suma, que
administrar os conflitos para que eles não contaminem toda a
realação e não contribuam mais ainda para o esgotamento (imperial
overstretch)
dos EUA, o que só serviria à agenda globalista — incluindo àquela
preconizada pelo esquema eurasiano.
Basicamente,
o desafio de Trump será o de evitar esses atritos, colocar ordem em
casa, recuperar a economia americana (avançando, inclusive, sobre os
problemas fiscais) e restaurar o poder geopolítico dilapidado
durante o Governo Obama.
Conseguir
isso demanda mais do que as habilidades de um master persuader ou de
um grande negociador, demanda uma inteligência estratégica que só
se apresenta em raríssimas ocasiões históricas.
Trump
parece ter o que é necessário, mas este será seu verdadeiro teste
de fogo e só o tempo revelará se o presidente americano será capaz
de suceder onde todos os seus antecessores fracassaram.
A
posição do Trump (que será testada pela realidade) parece bem
condensada na explicação que o presidente deu sobre como pretende
lidar com a Rússia enquanto enfrenta pressões no âmbito
doméstico: “Prefiro
correr riscos políticos para avançar a paz do que arriscar a paz
para obter ganhos políticos. Não farei escolhas de política
externa pensando em tentar agradar futilmente os críticos
enviesados, a mídia ou os Democratas que querem obstruir meu
governo”.
Por
fim, tudo o que temos de substancial sobre o encontro até agora é:
(I)
ao contrário do previsto pela mídia, os EUA não reconheceram a
anexação da Criméia;
(II)
as medidas de controle de armamento (START III, INF, não-proliferação
no espaço sideral) receberam muita atenção durante a cúpula e há
a possibilidade real de avanços;
(III)
há a intenção de cooperar na normalização da Síria, mas poucos
detalhes foram oferecidos sobre como essas intenções poderiam se
tornar realidade;
(IV)
o ciber-espaço continuará sendo uma arena importante de disputa, na
qual a China será a grande beneficiada enquanto a mídia americana
continuar obcecada apenas com as atividades russas e nada falar sobre
o problema em geral.
Leia também: DE SAMAMBAIA AO CBMDF, KLESLEY GARCIA
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