O presidente americano é um isolacionista que mostra a força
americana, sem o antigo ímpeto intervencionista que transformou a
Grande Guerra em um conflito global
Por Flávio Morgenstern
Donald Trump, o presidente que é tão mais odiado quanto menos é
compreendido, foi eleito com uma plataforma tirada do ex-presidente
Ronald Reagan, que dizia “let’s make America great
again”. Trump apenas tirou o “let’s” e
lá estava seu slogan.
Contrário ao establishment de esquerda e de direita,
foi sempre crítico das desastrosas e caríssimas operações da CIA
pelo mundo, além de ter sempre se posicionado contra a guerra do
Iraque (ao contrário de Hillary Clinton, à época deputada),
preferindo uma postura que, de certa forma, pode ser chamada de
isolacionista.
O isolacionismo americano existe desde tempos coloniais, mas seu
grande auge no século XIX foi a Doutrina Monroe, representada pela
máxima “América para os americanos”.
O interessante para um país que havia se tornado independente há
meros 40 anos era uma espécie de acordo tácito que o presidente
James Monroe sugeria: americanos não iriam tomar parte nas disputas
geopolíticas européias, desde que a Europa também não buscasse
novas colônias em territórios americanos.
Ou seja: não se tratava de um dogma (nunca intervir, sob hipótese
alguma, mesmo sob ataque), e sim quase uma ameaça. A
doutrina Monroe, desde 1823, manteve a América em relativa paz para
crescer economicamente e se tornar uma potência econômica nas
vésperas da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
Woodrow Wilson, presidente desde 1913, chamava a Grande Guerra de
“Guerra Européia”, para marcar sua posição e sua promessa de
campanha de reeleição: não colocar os Estados Unidos em combate.
Reeleito em 1916 sob o peso da Revolução Mexicana, tão logo
assumiu o novo governo em 1917, pediu ao Congresso uma declaração
de guerra contra a Alemanha, colocando a potência emergente no campo
de batalha europeu.
Wilson, um Democrata tout court, enxergava o
complexíssimo sistema de alianças e dinastias da Europa como um
empecilho para a paz. Seu objetivo não era apenas derrotar
militarmente o Império Alemão: não era apenas questão de
vencê-los, mas de reconstruir o país à imagem e semelhança do
“americanismo”, e os monarcas viram a substituição dos sistemas
dinásticos europeus por modelos democráticos.
Democracia (é a crença até os dias de hoje) traria paz. Em questão
de menos de 20 anos, fascistas e nazistas estariam no poder, pelo
voto. Wilson também fez a América ser o primeiro país a reconhecer
e elogiar a Revolução Bolchevique, em 1917.
A América possui uma crença fechadíssima em seu sistema –
americanos costumam ignorar a história de outros países, e fazem
piada dizendo que a história começou em 1776 – no entanto, cada
vez mais historiadores estão revendo o papel de Woodrow Wilson, que
não era criticado nem pela direita.
Boa parte da razão para tal foi a segunda Guerra do Iraque,
propagada por George W. Bush em sua linha neoconservadora, que
podemos resumir como sendo a crença de que a “democracia”
americana deveria ser espalhada por vias militares pelo
mundo para torná-lo mais seguro.
Nada poderia concordar mais com Woodrow Wilson, que acreditava que as
“autocracias” monárquicas européias tinham causado a Primeira
Guerra Mundial. Nada, hoje, pode soar mais estapafúrdio. George W.
Bush não poupava elogios e referências a Woodrow Wilson. A
esquerda, revolucionária e anti-monárquica como sempre, passou a
silenciar seus antigos elogios a um dos mais aclamados presidentes
Democratas da América. E mesmo antigos acólitos intelectuais do
neoconservadorismo, como Francis Fukuyama, passaram do apostolado à
apostasia desta ideologia (America at the Crossroads: Democracy,
Power, and the Neoconservative Legacy, lançado em pleno 2006),
passando até mesmo a defender Barack Obama.
Bush falava em construir países, em criar a democracia em lugares
como o Afeganistão e o Iraque, onde disputas tribais valem muito
mais do que o, digamos, “Estado Democrático de Direito”, como é
macaqueado em certos lugares.
Donald Trump, em
discurso no Afeganistão, falou abertamente que os próprios
afegãos deveriam cuidar de seu futuro: “Nós não estamos mais uma
vez construindo nações. Nós estamos matando terroristas.” As
palavras, que deveriam ser consideradas as mais “politicamente
incorretas” possíveis para o presidente boquirroto, não foram
pisoteadas pela esquerda e pela mídia como de costume: nada
aliviaria mais a imagem de Trump do que ir a um país como o
Afeganistão e dizer que não quer construir a democracia, apenas
matar terroristas.
O lema “America first” de Trump é simples e
muito mais meditado do que fanatismos como o de Ron Paul ou outros
doutrinários, que tomam a palavra como uma divisa sem atentar para
seu teste na realidade.
Bem diferentemente da Primeira Guerra, em que a América saiu
vencedora, rica e como o país mais poderoso do mundo, e bem
diferentemente da guerra do Iraque, que foi custosa e levou a opinião
pública mundial a enxergar “conservadores” como demônios,
Donald Trump prefere apenas lidar com os interesses americanos,
mas sabendo que há não apenas terroristas, mas
poderosos Estados como o Irã que varreriam a América do mapa na
primeira oportunidade.
Ao contrário de seus predecessores, Trump tem uma ameaça gigantesca
a seu país – e não apenas aos interesses de seu país – em suas
mãos. Mas o presidente americano tem algo em comum com Ronald Reagan
(apesar de também neoconservador, um pragmático que queria evitar
guerras custosas): o domínio da “paz pela força”, ou mais
exatamente pela grandeza. Quem ousaria enfrentar um gigante como os
Estados Unidos?
E Reagan deu um exemplo no próprio Irã. Em 14 de abril de 1988, a
fragata americana Samuel
B. Roberts (FFG-58) foi seriamente danificada por uma mina
naval iraniana. A resposta de Reagan foi simples: a Operação
Praying Mantis, que simplesmente destruiu metade da Marinha
iraniana. Fim do assunto.
Desta feita, Trump respondeu ao assassinato de um investidor
americano, à derrubada de um drone americano Northrop Grumman RQ-4
Global Hawk de US$ 131 milhões em 20 de junho pela Guarda
Revolucionária Iraniana no estreito de Hormuz e à invasão da
embaixada americana no Iraque no último dia de 2019 simplesmente
mandando o número 2 do Irã ir ao encontro de suas 72 virgens.
Alguns acham que é uma postura “belicosa”. Os antigos romanos já
sabiam: se vis pacem, para bellum. Não foi o
assassinato do arquiduque herdeiro do trono austro-húngaro por um
grupo terrorista. Foi como se tivessem matado Goebbels assim que o
Terceiro Reich colocasse o primeiro tanque na Polônia. No primeiro
caso, houve a Primeira Guerra Mundial. No segundo, as chances de ter
havido uma Segunda teriam diminuído muito.
É fácil para palpitadores falar em “Terceira Guerra Mundial”
assim que testemunham a notícia de um ataque militar entre dois
países importantes. Mas são como jogadores de damas tentando
entender um jogo entre Karpov e Kasparov. Ou o que são: leitores de
notinhas de jornal tentando entender a geopolítica de um dos lugares
mais complexos do planeta. O sistema de alianças atual, diga-se,
também não prevê uma escalada de violência como o complexo modelo
da Primeira Guerra, ainda que mantenha muitos resquícios da Guerra
Fria.
Donald Trump, afinal, foi pari passu com Reagan.
Reagan acabou com a Guerra Fria, foi o nome mais importante para
derrubar o muro de Berlim e esfacelar a União Soviética. Trump, que
foi capaz de chamar Kim Jong-un para a mesa de negociação, sabe que
o prognóstico agora é de um regime iraniano nos estertores,
perdendo apoio popular interno, e sem seu grande líder militar.
Entender a Primeira Guerra, e como o mundo passou da paz para a mútua
destruição em questão de meses, pode evitar visões simplistas
como as de nossos jornalistas.
Aproveite e assine o Guten
Morgen Go para conhecer o conflito que definiu o
mundo como é hoje – inclusive o Oriente Médio, que muitos crêem
ser nossa nova Bósnia. Com desconto especial de pré-estréia só
nesta semana!
Fonte: Senso In Comum
Leia também: TOFFOLI RECUA E PREÇO DO DPVAT SOFRERÁ REDUÇÃO
0 Comentários
Obrigado pela sugestão.